Indignado, resmungo: “Coisa bárbara!”
O parlamento da Catalunha aprovou lei proibindo as touradas na região, mais precisamente em La Monumental, a praça de touros de Barcelona, onde, pela primeira e única vez, assisti a uma tourada.
Até então, de touradas, só sabia o que vi no filme “Sangue e Areia” (1941), com Tyrone Power, que assistira, ainda menino, com meu pai, no cinema Olímpia, em São Luís. Nele, as touradas eram apenas parte de uma história romântica. Mais tarde conheceria algumas gravuras de Picasso que, em vez do romantismo do filme, mostrava o que há de brutal nas corridas de touros.
Assim que, tourada de verdade, só vi mesmo em Barcelona, em companhia do poeta João Cabral, que era então cônsul do Brasil na Espanha. Convidou-me para almoçar naquele domingo e, em seguida, irmos assistir a uma tourada. Aceitei o convite com muito interesse, na expectativa de viver uma experiência única, já que, por iniciativa própria, eu jamais entraria em uma “plaza de toros”.
Fomos. Mal me sentei na arquibancada, fui tomado por uma espécie de euforia, diante daquela arena ainda vazia onde haveria de desenrolar-se um espetáculo de vida e morte. Enquanto isso, João Cabral me informava acerca das touradas, contando-me que o touro era mantido por dois dias num cubículo escuro sob as arquibancadas, donde seria trazido, ao começar a tourada, para a arena.
Foi então que homens montados a cavalo entraram, sob o soar de clarins, um “frisson” percorreu aquela massa de espectadores e eis que de um dos portões sai um touro negro aos galopes.
Invade a arena mas logo se detém, como que surpreso diante daquela situação inusitada. Não estava entendendo nada: “que faço aqui, diante de tanta gente?” -terá ele se perguntado, sem imaginar que, de fato, havia sido posto ali para morrer.
Como hipnotizado, eu o seguia com os olhos, temendo pelo que haveria de ocorrer. Os homens montados nos cavalos correm agora em direção ao touro que se mantém parado, indeciso, perplexo talvez.
Tenta afastar-se mas é cercado e decide reagir: acomete sobre um dos cavaleiros, que o atinge com uma bandarilha, no dorso, à altura do cangote. Ele, enfurecido, volta-se contra o agressor mas é atingido por outra bandarilha, lançada pelo outro cavaleiro. O sangue desce-lhe das feridas. Assisto àquilo, chocado, com pena do animal.
Não me lembro se, àquela altura, o toureiro já estava presente na arena. De qualquer modo, vejo-o agora aproximar-se do touro e desafiá-lo. Provoca-o, agitando a capa vermelha, onde traz escondida uma espada. O animal, sangrando muito, encara-o e parece hesitar, se avança sobre ele ou não. Talvez não saiba direito quem o feriu, bem pode ter sido aquele sujeito que parece bailar a sua frente.
Está furioso, atordoado e certamente não entende por que o agridem daquela maneira, se nenhum mal lhes fez. Detém-se e o encara. Menos cauteloso, agora, ataca-o, tentando atingi-lo com os chifres, mas vê que se enganou, investiu contra a capa com que se protege e o engana. “Hijo de puta!” Deveria balbuciar, se falasse espanhol e touro não fosse, mas gente. Igual àquela gente que se diverte com seu desespero.
Recua estrategicamente e tenta atingir o toureiro, numa investida fulminante e vã: sente uma dor funda, a vista se lhe turva, perde forças e cai sobre as patas dianteiras, soltando golfadas de sangue. O último golpe de espada atingiu-lhe o coração. Estrebucha, estica as pernas e morre, diante da multidão que aplaude entusiasticamente o toureiro. Este, sorridente, saca de uma faca, aproxima-se do touro morto, corta-lhe uma das orelhas e a exibe, vitorioso, para o público, que então delira. Indignado, resmungo: “Coisa bárbara!”.
João Cabral, surpreso com minha reação, defende a tourada, que seria a vitória da inteligência sobre a força bruta. “Nada disso”, respondo. “É a vitória da covardia e do sadismo sobre um animal indefeso”.
A esta altura, estamos de novo em sua sala. João me acha demasiado ingênuo para compreender a significação das touradas. Sirvo-me de vinho, e ele, usando a toalha da mesa como uma capa de toureiro, movimenta-se na sala, a desafiar a fúria de um touro imaginário. Era o poeta acostumado a tourear palavras.
Ferreira Gullar
Fonte: ARQUIVO DE ARTIGOS ETC.
Obrigada,
Claudia Pinelli.
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